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Maestro que levou cores do Brasil ao mundo é exemplo de superação

A trajetória de vida de algumas pessoas é tão inspiradora que rende

best-sellers e filmes com bilheterias fabulosas. Mas somente a um seleto grupo é reservado o dom de tocar fundo na alma de outros de sua espécie. Um desses seres banhados de luz é João Carlos Martins, dono de um percurso no qual transbordam talento, tragédias e uma inacreditável força de entendimento e superação. O pianista e regente virtuoso que por várias vezes foi desafiado pelo destino a abandonar os palcos abriu na noite de terça-feira, no Centro de Convenções e Eventos de Cascavel, a décima edição do Conexão Acic, um dos mais longevos e bem-sucedidos ciclos de palestras do Paraná.

Para um público de cerca de 700 pessoas, o músico reconhecido como um dos mais brilhantes intérpretes de sua geração do alemão Johann Sebastian Bach revelou o sucesso, os percalços, as angústias e as vitórias de um enredo que parece ter brotado da genialidade de escritores do quilate do inglês William Shakespeare. “Minha história como músico começou antes mesmo de eu existir”, disse João, situando a data de 1898 como seu primeiro marco temporal. O pai dele alimentava o sonho de ser um músico clássico. De família humilde, não tinha recursos para pagar os estudos, mas recebeu a oferta de aprender a tocar piano. Três dias antes de começar as aulas perdeu uma das mãos em um acidente de trabalho, o que sepultou sua carreira antes mesmo dela começar.

Nascido em São Paulo em 1940, João teve seu primeiro contato com o instrumento que o consagraria oito anos mais tarde. Depois de seis meses de conservatório ele decidiu se inscrever e ganhou seu primeiro concurso nacional. “Em alguns anos eu teria uma vida de sonhos, apresentando-me para públicos altamente exigentes em alguns dos mais cobiçados palcos do mundo, em Nova York, Paris e Londres”. Aos 26 anos, João se apresentava ao lado das mais conceituadas orquestras e era aclamado pela crítica especializada dos jornais e canais de música clássica.

O primeiro grande revés veio em 1965, quando o pianista brasileiro morava em Nova York. Ele foi convidado a participar de um treino de seu time, a Portuguesa, no Central Park e acabou sofrendo uma queda. O acidente provocou uma perfuração no cotovelo que afetou o nervo ulnar, levando à atrofia de três dedos da mão direita. O recomeço veio quatro anos mais tarde, após diversas cirurgias e sessões de fisioterapia. Ele passou a usar dedeiras, e apesar do esforço foi duramente criticado em um artigo no The New York Times e então decidiu parar. “Vendi todos os pianos que tinha e me retirei dos palcos”.

Um encontro com o campeão mundial de box, Eder Joffre, faria com que João Carlos Martins reavaliasse sua decisão. “Disse ao Eder que ele deveria reconquistar seu cinturão e recolocar o Brasil no alto do pódio da categoria”. Mesmo com 37 anos ele aceitou o desafio e um ano e meio depois venceria novamente. A atitude do boxeador fez com que o pianista se sentisse renovado para seguir com sua recuperação e retomar a carreira. A volta não poderia ter sido mais triunfal. Três mil e cem pessoas foram ao Carnegie Hall, o templo sagrado da música erudita norte-americana, para ver o brasileiro.

João foi então convidado a gravar um disco com músicas do repertório de Bach e no fim dos trabalhos, em Sofia, na Bulgária, foi vítima de um assalto. Ele levou um golpe tão forte na cabeça que precisou ficar hospitalizado por oito meses. “A situação era tão delicada que precisei de um procedimento conhecido por reprogramação cerebral. E, mesmo contra as probabilidades, voltei a tocar e a alcançar o auge da forma com a execução de 21 notas por segundo”. Mas o destino cobraria seu preço. O pianista sentia espasmos e convulsões ao falar e, para ter qualidade de vida, precisaria cortar um nervo que lhe tiraria todos os movimentos da mão direita. O show de despedida foi em Londres e mais uma vez ele era aclamado como um dos gênios de sua geração de músicos.

Sem poder usar a direita, João desenvolveu um método para tocar com a mão esquerda que de tão certo permitiu que ele voltasse aos concertos. Em razão de um tumor, acabou por perder a flexibilidade da esquerda também. Nessa altura, tinha 64 anos. Em um sonho encontrou a resposta para seguir nos palcos e então foi aprender regência. “Sempre em busca da excelência, passei a associar a música à responsabilidade social”. Dai nasceram projetos que já alcançaram dez mil crianças e adolescentes, inclusive menores infratores que, anos mais tarde, chegariam a músicos de destaque em orquestras de todo o mundo. “A música tem um poder incrível, até de vencer o crime”, afirma João, que virou tema de vários documentários e filme em exibição em salas e cinemas de todo o mundo.

Aventuras

Hoje aos 77 anos, João é um exemplo de superação e emprega sua história para motivar e incentivar outras pessoas. Ele lembra com bom humor de algumas aventuras da mocidade, como de na Colômbia preferir se hospedar em um bordel e de usar a batina de um parente religioso para poder ir a um baile de fantasia. Aclamado em palcos do mundo todo por mais de 15 milhões de espectadores, João Carlos Martins é uma inspiração pelo talento, pela perseverança e principalmente pela humildade. Durante sua palestra em Cascavel, ele citou a frase de outro gênio brasileiro da música, Vila Lobos, para expressar a força e a importância das artes em um país: Não é um povo inculto que vai julgar as artes. São as artes que mostram a cultura de um povo”.

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